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segunda-feira, 4 de julho de 2011

Da miséria ideológica à crise do capital

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Ricardo Lara (*)
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O livro da cientista social Maria Orlanda Pinassi emerge, em tempos de ilusões pós-modernas, na oposição da apologética acadêmica niilista. A teoria social articulada em seus ensaios alimenta-se na tradição ontológica materialista e dialética que se agarra a práxis revolucionária. Aliada ao conceito de decadência ideológica – “um dos mais férteis instrumentos da ciência marxiana da história” (PINASSI, 2009, p. 16) –, a autora oferece contundente arsenal de críticas as ideologias irracionais que se instauraram no pensamento social após a consolidação da hegemonia burguesa.
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O conceito de decadência ideológica, elaborado por Georg Lukács (1885–1971) designa a crise espiritual da burguesia após 1848. Para Lukács o que temos, com a evolução do pensamento social burguês, é a: "liquidação de todas as tentativas anteriormente realizadas pelos mais notáveis ideólogos burgueses, no sentido de compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem temor das contradições que pudessem ser esclarecidas; essa fuga numa pseudo-história construída a bel prazer, interpretada superficialmente, deformada em sentido subjetivista e místico, é a tendência geral da decadência ideológica."
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Pinassi reflete sobre a incidência do conceito de decadência ideológica na atualidade, principalmente diante das ideologias que pregam o “fim da história”, o “fim da ideologia”, o “fim do trabalho”. O pensamento burguês contemporâneo, na maioria dos casos, apresenta tendências que não se preocupam em construir conhecimentos que levam em consideração a materialidade social. O pensamento social faz das ciências sociais e humanas um mecanismo irracional que nega o desenvolvimento sócio-histórico e evita produzir conhecimentos que têm como pressuposto o mundo da atividade concreta e sensível do homem.
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Nos tempos presentes a irracionalidade burguesa avança a passos vastos, as concepções científicas de todas as áreas do saber mostram-se capacitadas para responder as ânsias de um modo de vida que sobrevive entre a plena realização da coisa (fetiche do capital) e a barbárie social. As possíveis respostas para os fenômenos sociais e naturais que afligem a humanidade estão presentes em todas as ciências, mas os abismos entre a realidade social e suas percepções científicas geram concepções caóticas. Os “paradigmas” científicos explicam o homem tentando buscar sua essência, mas não compreendem que a essência humana deve ser encontrada no conjunto das relações sociais, pois “a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais.”
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A decadência ideológica desvenda o “racionalismo burguês”, justificador do desenvolvimento capitalista do final da segunda metade do século XIX, que se ancora no período imperialista, e concretiza-se nas crises cíclicas do século XX. Nessa processualidade social surgem os causídicos do sistema, com suas teorizações do “pleno emprego”, do “estado de bem estar social”, sustentadores da inconsciência burguesa. Pinassi expõe o poder da ideologia, revestida de apologética, que oferece sustentação para a acumulação capitalista. O conceito de decadência ideológica revela a crítica da totalidade social, revela a conexão entre força material e construção ideológica do sistema do capital, oferece a possibilidade da crítica, genuína e fecunda, que resgata a perspectiva ontológica.
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Os ensaios que compõem o livro depositam confiança na alternativa socialista como a única opção para a sobrevivência da humanidade. Aborda questões fundamentais da transição socialista. Desmistifica a irracionalidade burguesa e abre o caminho para a teorização da revolução socialista, pois a história da humanidade não é algo dado e acabado como ampara o pensamento burguês apologético. A luta de classes e a constituição da classe revolucionária é o principal tema perquirido ao longo das páginas. Os textos abordam as principais polêmicas do projeto verdadeiramente socialista, Pinassi não teme em deixar evidente sua postura radical contra as ilusões irracionais acadêmicas pós-modernas.
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Para isso ela inquieta-se com a universalização do capital e suas absurdas e cruéis formas de irracionalismo. Para levar a êxito tal posicionamento, nota-se, no livro, a atenta interlocução com as obras de Marx, Lukács e Mészáros, ganhando evidência a percepção audaz de extrair os debates nodais da crítica ontológica expirada na ciência da história marxiana. As interlocuções com os clássicos do pensamento marxiano rejuvenesce as críticas impenitentes ao capitalismo. Sem rodeios apologéticos, a autora vai a questão essencial: só é possível liberdade e democracia numa sociedade para além do irracionalismo burguês, da propriedade privada e da alienação. O principal fundamento da crítica marxiana foi a descoberta de quê a produção e reprodução da vida social burguesa se estabelece pela dialética da propriedade privada e do trabalho estranhado.
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A autora, ao abordar as temáticas polêmicas, questiona o medo dos homens contemporâneos, o temor que vem transvestido de mais alienação. A teoria social tem medo de questionar a realidade e colocar em xeque o metabolismo social do capital. Perante isso, evidencia-se a generosa crítica aos anticapitalistas românticos que não questionam a exploração da mais-valia e a propriedade privada, e aos que levantam a bandeira visionária dos “direitos das minorias”. A racionalidade pseudo-crítica não questiona as raízes das contradições da sociedade burguesa, ignora a luta de classes e não resgata a crítica a barbárie social imposta pela ordem do capital. Depois de ler o livro, percebemos o quanto e o porquê as ciências sociais e humanas estão tão distantes da realidade social.
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Enfim, na contemporaneidade, muito se escreve e muito se lê sobre a sociedade humana e suas relações sociais submetidas à lógica do capital, mesmo aqueles que se pautam na crítica da sociabilidade burguesa acabam, em alguns casos, reproduzindo estilos acadêmicos oriundos da decadência ideológica. Pinassi diverge da maioria da intelectualidade atual, afronta o “tema” da emancipação humana como prioridade no debate das ciências sociais e humanas. O destemido livro representa a imprescindível crítica radical às ideologias apologéticas e, por conseguinte, irracionais. A leitura é uma interlocução, segura, com Marx, Lukács e Mészáros, na melhor maneira da aspiração ontológica, as análises são sobre determinadas condições de existência reais, históricas e transitórias, as críticas teóricas são sobre as relações de produção e reprodução da vida humana sob as contradições inconciliáveis do sistema do capital.
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(*) Professor adjunto do curso de Serviço Social da UFSC.
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FONTE: Lista JSB Unificada
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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Florestan Fernandes, um intelectual do povo
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Glauco Faria
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No último dia 10 de agosto, completaram-se 15 anos da morte do sociólogo Florestan Fernandes. Obviedade dizer que se trata de um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve, mas é preciso ressaltar que, além da sua rica produção, ele não a confinou aos muros da universidade. Como lembra Barbara Freitag, professora titular do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), no artigo “Florestan Fernandes: revisitado”, ele conseguiu encarnar o sentido da palavra “intelectual” utilizado por Jürgen Habermas, como aquele que “se caracteriza, entre outras coisas, pelo fato de que abre mão de qualquer dimensão elitista, e de que fala, no espaço público, não como um intelectual de partido, ou como um conselheiro do rei, mas somente em seu próprio nome, como cidadão, naturalmente com o objetivo de convencer os
outros”.
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Homem crítico e conectado com as grandes questões do seu tempo, o sociólogo paulista teve contato muito cedo com a realidade brasileira. Começou a trabalhar aos seis anos como engraxate e passou por diversas outras ocupações para auxiliar no sustento próprio e da família. Filho de uma migrante portuguesa que prestava serviços domésticos, seu nome de batismo foi inspirado no personagem principal da ópera Fidélio, única escrita por Beethoven. Mas ganhou da patroa de sua mãe – também sua madrinha –, Hermínia Bresser de Lima, a alcunha de “Vicente”, pois a origem estrangeira do nome do futuro intelectual incomodava a matriarca da aristocrática família. Este, além de outros atos que denunciavam a perspectiva senhorial e autoritária da elite brasileira, fariam parte das reflexões de Florestan mais tarde.
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Com uma infância e adolescência ocupadas com o trabalho, o estudo ficou em segundo plano e aos 9 anos abandonou as salas de aula, voltando apenas aos 17, quando fez o madureza, uma espécie de curso supletivo. Aos 21, entrou no vestibular para a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e, no começo de 1941, iniciou o curso de graduação em Ciências Sociais. No entanto, teria muitas dificuldades nesse ingresso na vida acadêmica, confessadas no livro A Sociologia no Brasil (Editora Petrópolis), que ajudariam a formar o perfil e atuação do intelectual.
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“A cultura dos meus mestres estrangeiros me intimidava. Eu pensava que jamais conseguiria igualá-los. O padrão era demasiado alto para nossas potencialidades provincianas – para o que o ambiente poderia suportar – e especialmente para mim, com a minha precária bagagem intelectual e as dificuldades materiais com que me defrontava, as quais roubavam grande parte do meu tempo e das minhas energias do que gostaria de fazer. Contudo, como me propunha a ser um professor de nível médio, as frustrações e os obstáculos não interferiam no meu rendimento possível.
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O desafio era trabalhado psicologicamente e, na verdade, reduzido à sua expressão mais simples: as exigências diretas das aulas, das provas e dos trabalhos de aproveitamento. Com isso, empobrecia o meu horizonte intelectual e humano. No entanto, não poderia sobrepujar-me e resolver os meus problemas concretos sem essa redução simplificadora, que se corrigiu por si própria, na medida em que progredi como estudante e adquiri uma nova estatura psicológica. Em suma, o Vicente que eu fora estava finalmente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora para mim, o Florestan que eu iria ser”.
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A questão do negro
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Freitag sugere uma divisão da obra de Florestan em três fases. A primeira se situa entre 1941 e 1968, antes da sua aposentadoria compulsória decretada pelo regime militar. No período, escreveu obras como Organização social dos tupinambás (1949) e A função social da guerra na sociedade tupinambá (1952), Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1959) e A integração do negro na sociedade de classes (1965). Esta última, resultado de sua tese de cátedra em Sociologia na USP, é significativa por dar uma nova direção ao estudo da situação racial no Brasil, contrapondo-se a muitas proposições apresentadas, por exemplo, em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. O livro trata da abolição e de como ela foi incompleta, partindo da análise do que ocorreu na cidade de São Paulo. Apesar da libertação, o Estado brasileiro não garantiu uma igualdade de fato entre os negros recém-libertos e os brancos, estabelecida apenas no plano jurídico. Para o autor, era preciso observar a herança escravista, evidenciando o preconceito racial como um dos aspectos de um processo que marca as relações sociais no Brasil, ligadas ao desenvolvimento do capitalismo no País.
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A reinterpretação de Florestan a respeito dessa questão remete a um traço marcante da sua trajetória, que é a análise da sociedade a partir da ótica da exclusão. "Os negros são os testemunhos vivos da persistência de um colonialismo destrutivo, disfarçado com habilidade e soterrado por uma opressão inacreditável. O mesmo ocorre com o indígena, com os párias da terra e com os trabalhadores semilivres das cidades", explica a socióloga Heloísa Fernandes, filha de Florestan. Sua preocupação com as relações raciais, no entanto, aparece antes de A integração do negro na sociedade de classes.
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No início dos anos 50, a Unesco realizava uma pesquisa no Brasil querendo desvendar como o país se constituía em um contraponto positivo à segregação racial existente nos Estados Unidos já que aqui, supostamente, a convivência entre negros e brancos era mais harmoniosa, mesmo levando-se em conta o recente passado escravista. Apesar dos recursos escassos, principalmente diante do tamanho do estudo, Roger Bastide convenceu seu colega de USP a aceitar a empreitada. Conforme relatado por Haroldo Ceravolo Sereza, autor de Florestan – a inteligência militante (Boitempo Editorial), “o resultado do trabalho apontou numa direção oposta à tese da Unesco. Embora o preconceito de cor tivesse, em São Paulo, de fato, contornos diferentes do preconceito nos Estados Unidos, a pesquisa revelou que ele existia, guardava profundas raízes com a escravidão e, o que é muito significativo, também com o seu fim”.
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As reações aos resultados da pesquisa foram narradas pelo próprio sociólogo no Seminário de Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1984, cuja exposição está em Florestan Fernandes – Leituras e Legados (Global Editora). “De imediato, fomos considerados `tendenciosos` e responsáveis pela `deformação da verdade` em vários níveis da sociedade circundante. Houve mesmo uma ocorrência típica. O diretor de uma escola de sociologia que afirmou publicamente que Bastide e eu estávamos introduzindo ‘o problema’ no Brasil! A comunidade negra, por sua vez, exagerou a importância da nossa contribuição. Estava maravilhada com o fato de termos rompido aquele isolamento psicossocial e histórico, feito dele uma arma da razão e da crítica. Principalmente, ficaram encantados com o fato de suas lutas terem encontrado resposta e confirmação. Parecia-lhes que a sociologia lhes abria uma `ponte de justiça`, acenando com a perspectiva de que aquilo que não se convertera em história poderia vir a sê-lo no futuro próximo.”