sábado, 11 de julho de 2009

O poder nu (parte III)
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Bertrand Russell (*)
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"A maquinaria da fraude - diz Grote - pela qual o povo era enganado e levado à submissão temporária, como um prelúdio da maquinaria da força, pela qual a submissão deveria ser perpetuada sem o seu assentimento, era coisa corriqueira entre os usurpadores gregos". Até que ponto as primitivas tiranias eram perpetuadas sem o assentimento popular, é coisa sobre a qual pode haver dúvidas, mas, quanto ao que se refere às tiranias posteriores, isso é, sem dúvida, verdadeiro. Tomemos, por exemplo, a descrição de Grote, baseada em Diodoro, do momento crítico da ascensão de Dionísio, o Antigo. As armas de Siracusa haviam sofrido derrotas e desgraças sob um regime mais ou menos democrático, e Dionísio, o líder escolhido pelos campeões de uma guerra vigorosa, exigia a punição dos generais vencidos.
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"Em meio do silêncio e da inquietude que reinavam na Assembléia de Siracusa, Dionísio foi o primeiro que se ergueu para dirigir-lhe a palavra. Discorreu longamente sobre um tema apropriado tanto para o temperamento de seus ouvintes como para seus próprios propósitos. Denunciou com veemência os generais que, segundo ele, haviam traído a segurança de Siracusa ante os cartagineses – apontando-os como culpados da ruína de Agrigento e do perigo iminente em que todos se achavam. Expôs seus crimes, reais ou supostos, não apenas com acrimônia e abundância de pormenores, mas, também, com uma violência feroz, ultrapassando todos os limites de um debate legítimo, procurando condená-los a um assassínio ilegal, como a morte dos generais ocorrida recentemente em Agrigento. "Tendes aí os traidores! Não espereis um julgamento ou um veredicto legal, mas lançai mão deles incontinenti infligindo-lhes uma justiça sumária". Essa exortação, brutal, era uma ofensa não só contra a lei como contra a ordem parlamentar.
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Os magistrados que presidiam a Assembléia censuraram Dionísio como perturbador da ordem e o multaram como a lei lhes permitia. Mas seus partidários acorreram ruidosos em seu apoio. Filisto não só pagou imediatamente a multa, como declarou, em público, que continuaria pagando, durante todo o dia, as multas semelhantes que pudessem ser impostas - e incitou Dionísio a que persistisse em tal linguagem, que lhe parecia apropriada. O que começara como uma ilegalidade agravava-se agora com um desafio aberto à lei. No entanto, tão debilitada se encontrava a autoridade dos magistrados, e era tão veemente o alarido que se erguia contra eles, na situação em que se achava a cidade, que não lhes era possível castigar ou fazer com que o orador se calasse.
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Dionísio prosseguiu em sua arenga em tom ainda mais inflamado, não só acusando os generais de haver traído, corruptamente, Agrigento, mas, também, denunciando os cidadãos mais destacados e ricos como oligarcas que exerciam um predomínio tirânico, que tratavam a maioria com desdém e se beneficiavam com os infortúnios da cidade. Siracusa, afirmou, jamais poderia ser salva, a menos que homens de caráter inteiramente diferente fossem investidos de autoridade. “Homens não escolhidos pela riqueza ou por sua situação, mas de nascimento humilde, pertencentes ao povo e bondosos em sua conduta, pela consciência de sua própria fraqueza".
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E, assim, se tornou tirano; mas a história não se refere a nenhuma vantagem que os pobres e os humildes hajam tido com isso. Confiscou, é verdade, as propriedades dos ricos, mas foi aos seus guardas pessoais que ele as deu. Sua popularidade logo se dissipou, mas não o seu poder. Poucas páginas adiante nos deparamos com Grote a dizer: "Sentindo mais do que nunca que o seu domínio repugnava aos siracusanos, e que se baseava apenas na força nua e crua, cercou-se de precauções provàvelmente mais fortes que as acumuladas por qualquer outro déspota grego".
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A história grega é peculiar quanto ao fato de que, exceto em Esparta, a influência da tradição era extraordinàriamente fraca na Grécia. Ademais, quase não havia moralidade política. Heródoto afirma que nenhum espartano sabia resistir a um suborno. Em toda a Grécia, era inútil fazer-se objeção a um político sob alegação de que ele recebia subornos do rei da Pérsia, pois seus adversários também o faziam, quando se tornavam suficientemente poderosos para que valesse a pena comprá-los.
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O resultado disso era uma luta desordenada pelo poder pessoal, conduzida pela corrupção, arruaças e assassínios. Neste assunto, os amigos de Sócrates e Platão estavam entre os mais inescrupulosos. O resultado - como se poderia prever - foi a subjugação por potências estrangeiras. Era costume lamentar-se a perda da independência grega, pensando-se nos gregos como se fossem todos semelhantes a Sólon e Sócrates. Quão pouca razão havia para se deplorar a vitória de Roma é coisa que se pode ver pela história da Sicília helênica. Não conheço melhor exemplo do poder nu do que a carreira de Agátocles, contemporâneo de Alexandre o Grande, que viveu de 361 a 289 a.C. e foi tirano de Siracusa durante os últimos vinte anos de sua vida.
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(*) Filósofo, matemático, político e ativista.
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(continua...)

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