sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O poder nu (parte IV)
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Bertrand Russell (*)
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A Itália renascentista apresenta um paralelo que se aproxima muito da Grécia antiga, mas a confusão é ainda maior. Havia repúblicas comerciais oligárquicas, tiranias segundo o padrão grego, principados de origem feudal e, além disso tudo, os Estados da Igreja. O Papa, exceto na Itália, impunha respeito, mas seus filhos não o faziam, e César Bórgia teve de lançar mão do poder nu.
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César Bórgia e seu pai, Alexandre VI, são importantes não devido apenas às suas pessoas, mas por terem inspirado Maquiavel. Um incidente da vida de ambos servirá para dar um exemplo da época em que viveram. Os Colonnas e os Orsinis haviam sido a desgraça dos Papas durante séculos; os Colonnas já haviam caído, mas os Orsinis permaneciam. Alexandre VI fez um tratado com eles, convidando o seu chefe, o Cardeal Orsiní, para o Vaticano, ao ter notícia de que César aprisionara, traiçoeiramente, dois Orsinis importantes. O Cardeal Orsini foi preso logo que chegou à presença do Papa; sua mãe pagou ao Papa dois mil ducados pelo privilégio de enviar alimentos ao filho, e sua amante presenteou Sua Santidade com uma pérola de alto valor, que ele cobiçava. Não obstante, o Cardeal Orsini morreu na prisão - por haver bebido, segundo se disse, vinho envenenado que lhe fora servido por ordem de Alexandre VI.
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Os comentários de Creighton sobre esta ocorrência ilustram o caráter de um regime de poder nu: "É surpreendente que essa ação traiçoeira não haja despertado nenhum protesto, sendo, pelo contrário, tão bem sucedida; mas, n a política artificial da Itália, tudo dependia da habilidade dos que se entregavam a tal jogo. Os condottieri representavam apenas a si próprios, e quando eram afastados, por quaisquer meios, embora traiçoeiros, não restava nada. Não havia partido algum, nem qualquer interesse, que se sentisse prejudicado pela queda dos Orsinis e dos Vitellozos. Os exércitos dos condottieri eram formidáveis enquanto seguiam os seus generais; quando os generais eram afastados, os soldados se dispersavam e entravam para o serviço de outros. A maioria dos cidadãos admirava a consumada frieza de César quanto a esta questão. Nenhum prejuízo fora causado à moralidade corrente... Quase todos, na Itália, aceitavam como suficiente a observação de César a Maquiavel: "É bom enganar aqueles que se revelaram mestres na traição". A conduta de César foi julgada pelo seu êxito".
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Na Itália renascentista, como na Grécia antiga, um nível muito elevado de civilização se unia a um nível moral muito baixo: ambas as épocas revelaram as maiores alturas do gênio e as maiores profundidades da canalhice e, em ambas, os canalhas e os homens de gênio não são, de modo algum, antagônicos uns aos outros. Leonardo construiu fortificações para César Bórgia; alguns dos discípulos de Sócrates se achavam entre os piores dos trinta tiranos; os discípulos de Platão andavam metidos em ações vergonhosas em Siracusa, e Aristóteles casou com a neta de um tirano. Em ambas as cidades, depois que a arte, a literatura e o assassínio floresceram, lado a lado, durante cerca de cento e cinqüenta anos, foram extintos juntos, por nações menos civilizadas, porém mais coesas, do Ocidente e do Norte. Em ambos os casos, a perda da independência política não implicava apenas decadência cultural, mas perda da supremacia comercial, seguida de um empobrecimento catastrófico.
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Os períodos de poder nu são, habitualmente, breves. Terminam, em geral, de um ou de outro modo, entre três modos diversos. O primeiro é a conquista estrangeira, como nos casos da Grécia e da Itália que já foram por nós examinados. O segundo é o estabelecimento de uma ditadura estável, que logo se torna tradicional. Disto, o exemplo mais notável é o império de Augusto, depois dos períodos das guerras civis, de Mario até a derrota de Antonio. O terceiro é o advento de uma nova religião, empregando-se a palavra em sua acepção mais ampla. O exemplo mais óbvio disso é a maneira pela qual Maomé uniu as tribos da Arábia, anteriormente inimigas. O reinado da força nua nas relações internacionais, depois da Grande Guerra, poderia ter terminado com a adoção do comunismo por toda a Europa, se a Rússia dispusesse, na ocasião, de um excedente exportável de víveres.
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Onde o poder é nu, não só internacionalmente, mas no governo interno de Estados separados, os métodos de adquirir poder são muito mais implacáveis do que em outras partes. (...) O poder é nu quando os seus súditos o respeitam somente porque se trata de um poder, e não por qualquer outra razão. Assim, uma forma de poder que tenha sido tradicional se torna nua logo que a tradição deixa de ser aceita. Segue-se daí que os períodos de pensamento livre e de crítica vigorosa tendem a transformar-se em períodos de poder nu. Foi assim tanto na Grécia como na Itália, durante a Renascença. A teoria adequada ao poder nu foi exposta por Platão no primeiro livro da República, pela boca de Trasímaco, que ficou agastado com Sócrates devido às suas amáveis tentativas para encontrar uma definição ética de justiça.
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(*) Filósofo, matemático, político e ativista.
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(continua...)
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